domingo, 12 de agosto de 2012

Euclides da Cunha - Os Sertões

Foto: Maiara Alves
Os Sertões
ISBN: 9788520925966
Autor: Euclides da Cunha
Editora: Nova Fronteira/Saraiva de Bolso
Páginas: 598
Gênero: História/Geografia

Sobre: Em estilo épico, Euclides da Cunha criou uma das obras-primas da literatura brasileira, descrevendo as batalhas entre os homens liderados pelo beato Antônio Conselheiro e as tropas do governo. Euclides, testemunha ocular da chamada Campanha de Canudos, narra a luta, observa a terra e analisa o homem num belo relato que destaca a determinação do sertanejo e busca compreender o fenômeno da liderança exercida por Conselheiro sobre milhares de pessoas.

Opinião: O ano é 1987. O carioca Euclides da Cunha é enviado pelo jornal paulista, O Estado de São Paulo, para acompanhar o conflito de Canudos, aqui na Bahia. O engenheiro, jornalista, professor, ensaísta, historiador, sociólogo e poeta talvez não soubesse que esse trabalho resultaria em um dos melhores livros da literatura brasileira e que marcaria seu nome para sempre na História do Brasil. Este fato ilustra a noção que defendo com vigor: nada é por acaso. Mas acima de tudo, Os Sertões apresentou ao Brasil o sertanejo, o homem que foi guardado pela condição de seu meio, pela natureza, e que representa a verdadeira nacionalidade brasileira.

Dividido em oito capítulos ("A terra"; "O homem"; "A luta"; "Travessia do Cambaio"; "Expedição de Moreira César"; "Quarta expedição"; "Nova fase da luta"; "Últimos dias"), Cunha descreve não só a Campanha de Canudos, como também a terra e o homem que o centro político-econômico do Brasil recém inaugurada República ignorava até então. É um registro das consequências que o golpe republicano causou nos grupos sociais, onde a nova situação do país apenas agravaram-lhe o sofrimento causado pela situação climática. Entre outras coisas, é também uma aula de português: a escrita de Euclides da Cunha é impecável e, para o leitor atual, rende uma quantidade vergonhosa de consultas ao dicionário. Há inúmeras discussões e análises ao longo dos cento e doze anos em que o livro foi para as prateleiras de livrarias e bibliotecas (e para as nossas), cada qual de acordo com o assunto em pauta do momento, a política vigente e a orientação e interesse político-ideológico de quem o analisa. Destaco, obviamente, o segundo capítulo, "o Homem", no qual Cunha descreve as interferências do clima, da terra, da situação política, da colonização e povoamento e do sertão em si, no homem que habita esta terra inóspita.

O sertanejo é, antes de tudo, um forte (p. 118). É uma das citações mais famosas e tem sido muito utilizada este ano por conta do centenário de nascimento de Luiz Gonzaga. Mas há cento e dez anos, Euclides da Cunha, a partir da observação do genocídio ocorrido em Canudos, assim descreveu o homem que sobrevivia [nos] dias claros e quentes, dos firmamentos fulgurantes, do vivo ondular dos ares em fogo sobre a terra nua (p. 139) esquecido desde o início por seus governantes e pelo resto do mundo. Esquecido pois, desde seu povoamento ainda no século XVI, o local que atualmente denominamos de sertão, foi utilizado e "povoado" com o objetivo de expandir a criação de gado que alimentaria a população do litoral e que tinha grande serventia no cultivo da cana-de-açúcar. Sabemos que nosso país não foi descoberto e que haviam povos em todo o continente com cultura e modo de vida próprios, e para a criação de gado, assim como no litoral para o cultivo da cana-de-açúcar no século XVI e XVII, milhões desses povos foram cruelmente assassinados por causa da acumulação de capital que enriqueceu a metrópole e seus aliados e que nos empobreceu e resultou nessa vida miserável. Dois séculos depois, Euclides da Cunha documenta em Os Sertões o modo de vida do homem resultado da miscigenação entre os povos originários (os "índios), o africano que criou o gado e cultivou a cana e o colonizador: o sertanejo é consequência da mistura entre o algoz, a vítima e fruto da natureza cruel.

Assim como os povos originários (os "índios") foram assassinados nos séc. XVI e XVII no povoamento do interior do país, do sertão, os sertanejos que sofriam com a seca e com o esquecimento das instituições governamentais, e decidiram seguir aquele que lhes profetizava um país melhor, Antônio Conselheiro, também foram dizimados no fim do séc. XIX em prol dos interesses daqueles que deveriam lhe proteger, em prol do Estado. As coisas realmente não mudam, permanecem de fato com pouca diferença. Além de descrever a miscigenação do sertanejo, ainda nos moldes do darwinismo social, Cunha observou que esse povo é antes de tudo, forte, pois em meio ao abandono, a agressividade do meio ele resiste e luta bravamente até seu limite. A descrição do homem e da terra é apaixonante, não tem nada de pomposo - e se assim parece, considero que o esmero é por afeição específica à este trabalho.

É um clássico, nem se eu passasse o resto da vida lendo e escrevendo sobre essa obra de Cunha e sobre o próprio autor não conseguiria fazer uma análise satisfatória de ambos, mas o recomendaria sobretudo àqueles que tem curiosidade sobre a formação da nacionalidade brasileira e pra desconstruir a colonização cultural da qual somos vítimas. O sertão é apaixonante, os sertanejos são a essência do nosso povo e espero que um dia todos percebam a importância e dêem o merecido valor à eles.

Quotes
Delinearam-nos os que se afoitaram primeiro com as vicissitudes de uma entrada naquelas bandas. E persistem indestrutíveis, porque o sertanejo, por mais escoteiro que siga, jamais deixa de levar uma pedra que calce as suas junturas vacilantes. (p. 29)
Nem um verme - o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria - lhe maculara os tecidos. (p. 43)
Ao passo que a caatinga o afoga; abrevia-lhe o olhar; agride-o e estoneia-o; enlaça-o na trama espinescente e não o trai; repulsa-o com as folhas urticantes, com o espinho, com os gravetos estalados em lanças; e desdobrase-lhe na frente léguas e léguas, imutável no aspecto isolado: árvores sem folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante... (p. 50)
É a árvore sagrada do sertão. Sócia fiel das rápidas horas felizes e longos dias amargos dos vaqueiros. Representa o mais frisante exemplo de adaptação da flora sertaneja. (p. 57-58)
E o sertão é um paraíso... (p. 59)
E o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono. (p.62)
Vinham esparsas, parceladas em pequenas levas de degregados ou colonos contrafeitos, sem o desempenho viril dos conquistadores. (p. 95)
O meio atraía-os e guardava-os. (p. 105)
O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. (p. 118)
A luta pela vida não lhe assume o caráter selvagem da dos sertões do Norte. Não conhece os horrores da seca e os combates cruentos com a terra árida e exsicada. Não o entristecem as cenas periódicas da devastação e da miséria, o quadro assombrador da absoluta pobreza do solo calcinado, exaurido pela adustão dos sóis bravios do equador. Não tem, no meio das horas tranquilas da felicidade, a preocupação do futuro, que é sempre uma ameaça, tornando aquela instável e fugitiva. Desperta para a vida amando a natureza deslumbrante que o aviventa; e passa pela vida, aventureiro, jovial, diserto, valente e fanfarrão, despreocupado, tendo o trabalho como uma diversão que lhe permite as disparadas, domando distâncias, nas pastagens planas, tendo aos ombros, palpitando aos ventos, o pala inseparável, como uma flâmula festivamente desdobrada. (p. 121)
Atravessou a mocidade numa intercadência de catástrofes. Fez-se homem, quase sem ter sido criança. Salteou-o, logo, intercalando-lhe agruras nas horas festivas da infância, o espantalho das secas do sertão. Cedo encarou a existência pela sua face tormentosa. É um condenado à vida. Compreendeu-se envolvido em combate sem tréguas, exigindo-lhe imperiosamente a convergência de todas as energias. Fez-se forte, esperto, resignado e prático. Aprestou-se, cedo, para a luta.  (p. 122)
A terra é o exílio insuportável, o morto um bem-aventurado sempre. (p. 145)
Espécie de grande homem pelo avesso, Antônio Conselheiro reunia no misticismo doentio todos os erros e superstições que formam o coeficiente de redução da nossa nacionalidade. (p. 177-178)
Ao passo que as caatingas são um aliado incorruptível do sertanejo em revolta. Entram também de certo modo na luta. Armam-se para o combate; agridem. Trançam-se, impenetráveis, ante o forasteiro, mas abrem-se em trilhas multívias, para o matuto que ali nasceu e cresceu. E o jagunço faz-se o guerrilheiro-tugue, intangível... As caatingas não o escondem apenas, amparam-no. (p. 234)
O exército sente na própria força a própria fraqueza. (p. 238)
Cercam-lhe relações antigas. Todas aquelas árvores são para ele velhas companheiras. Conhece-as todas. Nasceram juntos; cresceram irmãmente; cresceram através das mesmas dificuldades, lutando com as mesmas agruras, sócios dos mesmos dias remansados. (p. 239)
Quase sempre, depois de expugnar a casa, o soldado faminto não se forrava à ânsia de almoçar, afinal, em Canudos. Esquadrinhava os jiraus suspensos. Ali estavam carnes secas ao Sol; cuias cheias de paçoca, a farinha de guerra do sertanejo; aiós repletos de ouricuris saborosos. (p. 322)
A correria do sertão entrava arrebatadamente pela civilização adentro. E a guerra de Canudos era, por bem dizer, sintomática apenas. O mal era maior. Não se confinara num recanto da Bahia. Alastrara-se. Rompia nas capitais do litoral. O homem do sertão, encourado e bruto, tinha parceiros por ventura mais perigosos. (p. 346)
E os infelizes baleados, mutilados, estropiados, abatidos de febres, começaram a viver da esmola incerta dos próprios companheiros...  (p. 417)
E sobre tudo aquilo uma monotonia acabrunhadora... A sucessão invariável das mesmas cenas no mesmo cenário pobre, despontando às mesmas horas com a mesma forma, davam aos lutadores exaustos a impressão indefinível de uma imobilidade no tempo. (p. 423)
Há nas sociedades retrocessos atávicos notáveis; e entre nós os dias revoltos da República tinham imprimido , sobretudo na mocidade militar, um lirismo patriótico que lhe desequilibrara todo o estado emocional, desvairando-a e arrebatando-a em idealizações de iluminados. A luta pela República, e contra seus imaginários inimigos, era uma cruzada. Os modernos templários se não envergavam a armadura debaixo do hábito e não levavam a cruz aberta nos copos da espada, combatiam com a mesma fé inamolgável. (p. 446)
Torturavam-nos alucinações cruéis. A deiscência das vagens das caatingueiras, abrindo-se com estalidos secos e fortes, soava-lhes feito percussão de gatilhos ou estalhos de espoleta, dando a ilusão de súbitas descargas de alguma algara noturna repentina (...). (p. 460)

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