terça-feira, 3 de maio de 2011

Rubem Braga - A Palavra

Foto: weheartit.com


     Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito - como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas, imprudente ofício é este, de viver em voz alta.
     Às vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com sua vida de cada dia; sonhar um pouco; a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.
Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi; deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade, porque senti no momento - de depois esqueci.
     Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe receitas para fazer o canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa no piano; que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma transmissão de jogo de futebol... mas o canário não cantava.
     Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída e assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven - e o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação entre a alma do velho artista morto e o pequeno pássaro cor de ouro?
     Alguma coisa que eu disse distraído - talvez palavras de algum poeta antigo - foi despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que, de repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste tivesse sorrindo. E isso fizesse bem ao coração do povo; iluminasse um pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças.



Achei tão lindo e tão simples esse texto (crônica na verdade, retirado de Ai de ti, Copacabana) que a profª de Prod. Textual usou ontem no cursinho que decidi postar aqui, não só esse mas várias outras crônicas que eu julgar interessante. Rubem Braga nasceu em 1913 no Espírito Santo, foi jornalista, cronista e crítico literário; faleceu em 1990 no Rio de Janeiro.

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